Conheci Klaus Pedersen, um dos membros do estúdio Bedtime Digital Games em 2014, a meio do dia dedicado aos indies na Gamescom. A um canto do defunto Indie Megabooth (em Colónia) encontrei um jogo cuja estética e ambiência transpiravam o meu pintor favorito de sempre: René Magritte. Back to Bed era o jogo em exibição, o segundo do estúdio, que misturava a construção espacial herdeira do Surrealismo (em específico de uma fase da obra de Magritte) se mesclava num puzzle game onde controlávamos um cão-homem a guiar um sonâmbulo de volta à cama. Back to Bed tinha algo de único e original, e ainda que o tenhamos adorado sabemos que ele acabou por passar nos intervalos da chuva oblíqua para muita gente.

No mundo actual é muito fácil que bons jogos nos passem totalmente ao lado. Aliás, com todo o pragmatismo possível: a improbabilidade prática é mesmo de estar perfeitamente ao corrente de todas as centenas de lançamentos de videojogos semanais que acontecem nos dias de hoje. Mesmo que conheçamos bem o estúdio e a editora, é possível que as informações de lançamentos mais discretos e menos fulgurantes como um pequeno indie alemão entrem no lote dos esquecidos.

Nunca é tarde para compensar o tempo perdido, e não existe data de validade para descobrir um excelente jogo cuja existência descobrimos apenas meses depois do seu lançamento. Foi o que nos aconteceu com Figment, o terceiro jogo de Pedersen e companhia (o primeiro foi Chronology), e que mantém a mesma estética onírica que começa a definir-se como a marca do seu estúdio.

A complexidade conceptual entre Back to Bed e Figment é imensa, sinal da maturação e do crescimento do estúdio. Se aquele era uma sequência de puzzles inteligentes com uma perspectiva isométrica e com uma excelente direcção artística a aproximá-lo de um livro infantil, Figment é a evolução natural, ainda que ambiciosa, desse processo.

As páginas do livro infantil complexificaram-se. As pinceladas que compõem a abordagem artística deste estúdio está mais complexa, mais detalhada, mas também mais ternurenta. E não seria de esperar menos: Figment é um jogo de aventura e puzzles com uma história complexa, madura, ainda que contada de forma a que crianças compreendam. É o filme Inside Out é muita coisa, até no conceito. Na viagem metafórica e antropomórfica à mente e ao cérebro, numa construção e representação estruturais desses elementos que são subtilmente geniais.

Neste mundo controlamos Dusty na sua aventura de reaver o livro das suas memórias, roubados pelos medos e pelos pesadelos que habitam a mente. Para isso conta com a companhia sempre fiel de Piper, uma espécie de pássaro consciente que nos serve de companheira fiel ao longo de toda a aventura.

O mundo de Figment é infantilmente brilhante. E não usamos o termo “infantil” de forma pejorativa com o intuito de lhe atribuir uma aura naïf que não tem, muito pelo contrário. A construção deste mundo faz imensas pontes com o brilhante filme Inside Out, seja na forma metafórica como representa o funcionamento do nosso cérebro e do nosso pensamento, como na forma como humaniza algumas emoções. Dividido em “submundos” subtis, a sua grande divisão centra-se na ideia de destrinça entre hemisférios, o da esquerda, mais racional, recheado de mecanismos e rodas dentadas, denominada de Clockwork Tower, e o da direita, mais colorido, espontâneo e artístico, chamado Creativity Isles.

Para além de ser um delicioso livre infantil animado, Figment esconde também atrás de si uma abordagem de musical, à semelhança de outra surpresa de 2017, Midnight at Celestial Castle. A excelente banda-sonora é ainda mais exaltada pelas intervenções dos vilões que apenas dialogam em formato-canção. Cada um com o seu género, e que vai do jazz ao hard rock, ter introduzido esta mistura de momentos musicais e ao mesmo tempo bem-dispostos joga bem com todo o feel de Figment. Ainda que o enredo, da sua forma doce e até carinhosamente pueril fale de traumas e de ultrapassagem da dor, as metáforas que aplicam são excelentes para partilhar a experiência com um filho, aproveitando a forma como estes temas sérios são encarados para abordar assuntos difíceis para as crianças.

No meu caso Figment serviu na perfeição para falar sobre o medo com o meu filho, explicando como Dusty combate e persegue corajosamente os medos que vivem na mente é uma porta de entrada para se entender o que eles são, e a forma natural com existem em todos nós.

Com combate e puzzles simples, o que Figment não tem em termos de diversidade e em muitos casos desafio, compensa com uma exímia direcção artística, enredo e voice acting. A beleza de todo o mundo com as pinceladas visíveis ajudam a transpor o mundo interactivo do videojogo para a ambiência de livro infantil. As texturas que quase conseguem contar-nos a passagem de pincéis digitais, e que tornam Figment como uma assombrosa experiência para toda a família.

Figment vive no mesmo brilhantismo metafórico do filme Inside Out, obviamente inspirado por ele e pela forma como é possível abordar questões humanas (físicas e psicológicas) às crianças com valentes doses de engenho e arte. Um excelente jogo de aventura que nos vai fazer sorrir tantas vezes que nos faz lembrar os melhores momentos passados com os nossos livros infantis. Para o estúdio Bedtime Digital Games é um sinónimo de maturação, elevando já a sua própria fasquia nesta sua terceira criação. Depois de três jogos brilhantes e artisticamente entusiasmantes, deixa-nos uma ansiedade por vislumbrar o que virá no futuro. Mas se mantiverem esta abordagem familiar e a sua estética muito própria, a garantia é que o dia de amanhã será colorido e brilhante.