A Primeira Guerra Mundial é uma coisa estranha. Por um lado, é, provavelmente, o evento mais marcante da história da Humanidade. Por outro, é dos mais ignorados em termos de obras que o abordem. Há mais videojogos e filmes sobre as Cruzadas, sobre a conquista do Oeste e outros temas do que sobre a WWI. E, claro, há mais videojogos e filmes sobre a WWII do que os há da WWI… Por outro lado, é na WWI que a WWII encontra as suas raízes políticas e culturais. E, se a WWII nos trouxe tecnologias como o Radar, foi a WWI que nos trouxe a Aviação, a comida enlatada, os bancos de sangue e as subsequentes transfusões, os aparelhos de Raios-X e outros… Pode parecer estranho haver mais conteúdos sobre as invasões Vikings do que sobre a Primeira Guerra Mundial. Afinal, os Vikings são um povo com uma definição bastante lata, abrangendo mais uma área geográfica do que um país. Já a Primeira Guerra Mundial envolveu povos e nações dos quatro cantos do mundo e nomes como o Império Turco-Otomano ou a Áustria-Hungria nem sempre são facilmente identificáveis nos dias que correm (embora isso possa ser um problema dos hífens).

No fundo isto é uma espécie de Splatoon…

O conflito foi sangrento, contabilizando-se perto de 19 milhões de vítimas, entre civis e militares, e arrastou-se por quatro longos e penosos anos. Foi a Guerra que mudou de vez as estruturas militares, habituadas a uma guerra olhos nos olhos, confrontadas com o longo atrito da guerra das trincheiras, com cada metro de terreno a ser pago com vidas, muitas vidas. Foi a Guerra do gás. Da chuva. Da despedida da cavalaria e da entrada em cena dos Tanques de Guerra.

Já falámos aqui de outros jogos da Primeira Guerra Mundial. Verdun foi um deles. Battlefield 1 foi outro. Duas abordagens completamente distintas. Verdun tem uma abordagem mais cerebral, mais realística, mais independente e fiel. Battlefield 1 é o mesmo conflito mas sob a direcção de Michael Bay.

Michael BOOOOM

É estranho. Adoro o conceito de Verdun. Faço a digna vénia ao jogo e tenho um carinho enorme por ele. Prefiro-o a Battlefield 1. No entanto, joguei bastante mais este último, mesmo encontrando-lhe bastantes falhas – algumas das quais ainda presentes no subsequente Battlefield V. Battlefield 1 poderia ter sido um jogão, não tivesse entrado no facilitismo de agradar a tudo e todos, banhando o jogo em armas automáticas e semi-automáticas com uma inocuidade quase, quase ao nível de um The Division em modos que não o Hardcore. Podia. Não é. Mas é um jogo divertido e dá para passar umas boas horas nele. Enquadremo-las em guilty pleasures, se necessário. Certo é que, em termos de diversão propriamente dita, está largos passos à frente de Verdun.

A discussão não é de agora. O equilíbrio entre o realismo e o gameplay são uma das mais difíceis tarefas em termos de game design. Principalmente em jogos que se pretende que tenham uma componente de simulação, a questão surge sempre em discussão. Jogos como Operation Flashpoint ou Arma 3 tiveram-na. Noutra tipologia de jogo, recordo discussões que tivemos durante o desenvolvimento do Dakar 18 que iam também nesse sentido. Simular a realidade ou gamificar a situação, a bem do flow do jogo, assumindo a simplificação?

Na mais acutilante mostra de poderio bélico do Galinheiro, a squad composta por 3 membros do Rubber Chicken a dar cartas e bastonadas numa sessão de Tannenberg!

Adiante, porque o texto já vai longo… Tannenberg é uma espécie de sequela espiritual do supracitado Verdun, feito pelos mesmos estúdios M2H e Blackmill Games. A acção decorre na frente Leste da Primeira Guerra mundial e não entra em MichaelBayzices. Uniformes e armas da época, capacetes todos catitas e armas a quem temos que pedir licença para disparar, com tempo para lermos um poema de John McCrae enquanto recarregamos.

   “In Flanders Fields

   In Flanders fields the poppies blow

         Between the crosses, row on row,

      That mark our place; and in the sky

      The larks, still bravely singing, fly

   Scarce heard amid the guns below.

       We are the dead, short days ago

     We lived, felt dawn, saw sunset glow,

      Loved and were loved, and now we lie

            In Flanders fields.

   Take up our quarrel with the foe:

   To you from failing hands we throw

      The torch; be yours to hold it high.

      If ye break faith with us who die

   We shall not sleep, though poppies grow

            In Flanders fields.

– John McCrae

Há cinco Nações diferentes para escolher em Tannenberg, cada uma delas colocando até seis esquadrões no campo de batalha. Alemanha, Áustria-Hungria e Bulgária de um lado, Rússia e Roménia de outro, a frente Oriental povoa-se de uma multicolorida amálgama de tropas, com habilidades pertinentes a cada facção em guerra (os comandantes Romenos têm acesso a pedir apoio de morteiros, ao passo que os Alemães dispõem de Gás Mostarda. Os esquadrões são compostos por vários papéis, a desempenhar por jogadores, mas tanto o esquadrão como os membros que o compõem podem evoluir, desbloqueando novos equipamentos e vestuário, sem fugir ao que era habitual da época.

Os modelos mostram que não estamos perante um AAA. Mas, arre, o jogo é divertido!

A escolha de armas é, à primeira vista, desoladora. Não há milagres. As armas eram o que eram. As pistolas não são como nos filmes de cowboys e as espingardas estavam longe da M1 Garand que viria a tornar-se conhecida como “a arma que ganhou a Guerra”… mas na Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, as armas não eram menos mortíferas. O chumbo não quer saber se foi disparado mais ou menos tempos depois do seu antecessor. Pesa o mesmo e quando penetra na carne, lesiona. E, regra geral, não é coisa pouca. Em Tannenberg, as armas matam. Mesmo. Lentas, mas mortais. É mais comum morrer com um tiro do que com dois. É, então, fácil de matar. Porém, é brutalmente fácil de morrer também. E é nesse equilíbrio orientado para a dificuldade que o jogo brilha em todo o seu esplendor. O ritmo não é muito rápido. Não somos máquinas super treinadas. Somos cidadãos a quem colocaram uma arma na mão. E correr na lama não é para todos. Em certa medida, o jogo parece-nos algo lento no início, habituados que estamos a outro registo. Mas, se primeiro se estranha, depois entranha-se, e aproveita-se ao extremo aquela jogabilidade ligeiramente assimétrica entre nações diferentes, terrenos e vantagens diferentes. A satisfação de uma bala equivaler a uma morte é notória, quando logramos atingir uma sequência interessante e o jogo permite-nos aproveitar uma aproximação mais táctica à jogabilidade do que a mera gung-ho de quem aponta e mata tudo o que se mexa.

Para tal, os servidores com capacidade para 64 pessoas contribuem em muito e, claro, há uma riqueza incomparavelmente maior quando mergulhamos nas trincheiras com um punhado de amigos, algo que fizemos por horas a fio aqui no Rubber Chicken.

Tannenberg é bom, muito bom. Tem polimentos a fazer em termos de UI e de menus. Tem. Mas tudo isso é relegado para a categoria de pormenores quando consegue envolver-nos e entreter-nos tantas horas a fio como as que passamos na redação. São fãs de jogos da Primeira Guerra Mundial? Estão à espera de quê?