Parece que é sina minha andar sempre uma semana atrasado em escrever os artigos dos jogos que tomei contacto no Caça ao Indie ao vivo. Neste caso é o (aparentemente) maravilhoso Crossing Souls, desenvolvido pelo estúdio Fourattic e publicado pela Devolver Digital, que raramente nos traz um jogo que não seja pelo menos bom. Será esta a excepção à regra?

Crossing Souls coloca a carne toda no assador da nostalgia logo nos primeiros minutos. Com uma exímia abordagem à pixel art, detalhada e magnificamente animada, cada ecrã é quase um jogo dentro de um jogo com os autores a espalharem dicas e piscares-de-olhos a elementos da cultura pop. Não fosse a igualmente magnífica banda-sonora do nosso bem-conhecido Timecop1983 outro dos elementos a cativar-nos e a manter-nos presos a esta simpática peça de nostalgia.

Rapidamente percebemos que o apelo de Crossing Souls vive exactamente da mesma fórmula de outros objectos reminiscentes das nossas memórias. Adoro Stranger Things, assim como adoro Dark e tantas outras séries de TV, filmes e videojogos que exploram as minhas melhores memórias de infância. Sei que este apelo foi estudado e pensado pelos seus criadores como uma espécie de checklist de pontos-chave para nos manterem interessados de fio-a-pavio.

Fazer o stream em directo de Crossing Souls fez-me perceber algo que ou é uma impossibilidade minha neste formato de livestreaming ou é uma improbabilidade geral da plataforma. A componente narrativa, o seu ritmo, profundidade e qualidade são um dos elementos que mais procuro nos videojogos, e um dos elementos que pode quebrar a minha opinião sobre determinado título. Conversar com as pessoas que seguem os nossos streams é uma das grandes motivações para o fazer e certamente o combustível para o continuarmos a fazer semanalmente. Mas há algo que se “perde” nesta interacção: a capacidade de concentração em elementos que considero fulcrais, como a linha narrativa e a qualidade dos diálogos. Crossing Souls foi daqueles casos em que a opinião que estava a desenvolver enquanto jogava ao vivo com a companhia dos nossos espectadores é totalmente diferente da que tive depois de estar sozinho a jogá-lo. Partilhar os bons momentos do jogo com audiência e fazer esse exercício partilhar de apontar e reconhecer referências acabou por mascarar a infeliz insipiência que Crossing Souls tem.

Se artisticamente o jogo é interessante, é nas componentes mecânicas e narrativas que cai a nódoa pixelizada no pano de naperon dos anos 1980. Crossing Souls é um action platformer com a perspectiva de muitos dos jogos de 8 e 16 bits (e trazidos novamente para a ribalta com Hyperlight Drifter). Por muito que tenhamos grandes memórias com este misto de perspectiva aérea ligeiramente descida, o problema histórico que ela sempre teve era a indiferenciação causada entre objectos em altura, o que nos fazia ficar presos entre blocos que julgávamos estarem na mesma cota do que o nosso personagem.

Cada um dos 5 personagens do elenco de Crossing Souls responde à listagem de cumprimento de estereótipos de muitos dos filmes dos 1980s com protagonistas colectivos constituídos por crianças ou adolescentes, tal e qual como Stranger Things. Mas este jogo fica muito aquém dessa inspiração, e os personagens são literalmente bidimensionais, sem grande ligação para além da pré-formatação do seu estereótipo e das habilidades únicas que têm.

Para ultrapassar as desinspiradas sequências de platforming e de level design temos de usar as características de cada um dos 5, trocando automaticamente entre eles para nos ajustarmos ao que nos dá mais jeito para a situação. Mas é curioso é que dos 5, apenas 3 têm habilidades realmente únicas e que são utilizáveis mecanicamente em jogo, e os outros 2 são apenas paisagem a ocupar espaço no elenco.

O enredo, superficial, confiou demasiado em todas as referências e piadas da cultura pop para se revitalizar, e não consegue ir mais longe do que isso. O que é verdadeiramente uma pena, especialmente porque quanta maior atenção e mais tempo passamos neste jogo, mais sentimos a quantidade quase criminosa de oportunidades perdidas que aqui temos. Nem a abertura do mundo para a dimensão sobreposta onde vemos os espíritos dos mortos ao longo dos tempos vem trazer uma nova interpretação que não seja apenas a da excelência visual.

Bons argumentistas e bons game designers fazem toda a diferença num jogo, e neste caso parece-me que foi algo que ficou a faltar. Com uma atenção e execução estrondosa em termos visuais, com uma banda-sonora composta por um dos mais reconhecidos autores de retrowave, Crossing Souls faz-nos lembrar os fatídicos caos de jogos que são direccionados e liderados pela equipa de arte, sobressaindo nesse campo mas mostrando deficiências em todos os outros.

O apelo à nostalgia funciona como gancho e tem uma capacidade de enamoramento limitado em termos de tempo. Porque não aprender com a tantas vezes repetida abordagem de Stranger Things? Que nos aliciou a todos com um bolo de nostalgia, mas soube compor-se pelo meio com a qualidade e conteúdo necessários a ser algo mais que um mero apelo à memória. Crossing Souls, pelo seu lado, não conseguiu ser mais do que isso.