Apenas por uma vez na vida dei uma nota 10 a um jogo. Foi a Portal 2 já há uma série de anos. Estou a começar a escrever o texto sobre Clair Obscur: Expedition 33 (doravante somente Expedition 33) e a pensar se este não será o segundo.

Há algo de surpreendentemente mágico em Expedition 33. Tenta-nos enganar dizendo constantemente que não está a fazê-lo e é essa estranha simplicidade que faz dele especial, já que não se serve de subterfúgios ou jogos de fumo para nos manter na expectativa, oferecendo-nos uma história surpreendentemente simples durante imenso tempo, e isso é que é uma novidade, não precisar de estar constantemente a criar uma nova expectativa, uma nova surpresa, um novo gancho, para nos manter agarrados. Expedition 33 não é um livro de Dan Brown, será mais um Orwell em que a tensão vai acumulando até um final surpreendente e genial.

Tal como em Hollow Knight: Silksong, a minha curiosidade para com Expedition 33 veio do crescente burburinho que apontava um jogo independente feito por uma equipa de cerca de 30 elementos e com um orçamento baixo, a mais que provável jogo do ano. Ora, tudo o que vi foi que nem a equipa foi assim tão pequena, houve imensas subcontratações como é normal nestes casos, nem o orçamento foi propriamente o de um jogo independente, com as estimativas a apontarem a diversos números entre 15 e 50 milhões de euros. Valores díspares, que se encontram muitas vezes num valor intermédio entre os 25 e 30 milhões de euros. Tudo isso é irrelevante para o jogador, já que o que lhes interessa é se o jogo é bom, e é bom, mesmo bom, mesmo muito bom, tão bom que a pergunta a fazer não teria nada a ver com o facto do jogo ser indie ou não, mas sim porque há tão poucos feitos com este nível de cuidado, atenção ao detalhe e, porque não ser abusivo no meu raciocínio, amor.

Expedition 33 assenta numa premissa mais que conhecida. Há uma pintora que pinta um número sucessivamente mais baixo num monólito que as pessoas conseguem ver ao longe, esse número corresponde ao número máximo de anos que uma pessoa pode ter enquanto viva. Todos os mais velhos que esse número morrerão de imediato. Cada ano é enviada uma expedição para tentar encontrar e derrotar essa pintora para libertar as pessoas desse jugo. 66 expedições não tiveram sucesso nessa empreitada; somos a 67ª tentativa, durante uma fase em que a esperança de sucesso é cada vez mais baixa e as pessoas começam a desistir. Como base da caminhada é um argumento sólido e criativo.

Claro que nada disto serviria para alguma coisa se o jogo fosse uma confusão técnica, mas ao criar um mundo fechado, a Sandfall Interactive conseguiu controlar perfeitamente o ambiente, exploração e jogabilidade.

Expedition 33 é um jogo bonito, mesmo sem deslumbrar, embora a outra escala não posso colocá-lo no mesmo patamar de Hellblade 2: Senua’s Saga, muito porque um é um bom showcase técnico de 5 horas com o apoio da Microsoft, outro um jogo de 30 horas, o primeiro feito pelo estúdio, e mesmo assim o seu surrealismo preza-se a perdoar a repetição de assets, e mesmo os atalhos de construção pois os inclui perfeitamente nos cenários.

Estamos tão habituados aos tradicionais cenários norte-americanos na concepção dos jogos, que este plano de fundo claramente identificado com a França é refrescante e, quiçá, uma boa mostra arquitectónica Barroca ou de Brutalismo que vimos muito em Paris.

A qualidade sonora é divinal, com uma escolha musical de qualidade ímpar e uma representação vocal sublime, especialmente na versão original em francês, onde tudo encaixa de forma mais fluida, mas mesmo a versão de língua inglesa, a qual joguei a maioria do tempo, tem excelentes actores.

Mesmo a captura de movimentos proporciona personagens realistas, com poucos momentos em que a composição gráfica se sobrepõe ou parece pouco natural, sendo que apenas a personagem Sciel tem expressões faciais esquisitas, pouco naturais, e mesmo o desenho da face parece não encaixar no restante elenco, como se tivessem colocado um NPC do Creation Engine no meio de um mundo em Unreal Engine 5.

Mesmo a performance do motor de jogo não decepcionou, provavelmente dada a natureza particular de um jogo em que pontificam as batalhas por turnos, algo que simplifica muito a optimização dos cenários, já que todas as batalhas de cada nível eram representadas sobre o mesmo fundo, não existindo necessidade de programar acção em qualquer recanto do cenário.

Embora não tenham redesenhado a roda, as personagens que podemos adicionar à nossa festa permitem que a luta não estagne, já que o estilo de luta de cada um é suficientemente diferente para criar novas sinergias de grupo, ou composições situacionais óptimas consoante o estilo de inimigo.

Para além das tradicionais novas habilidades que vamos desbloqueando, que admito não são capazes de mudar o estilo de luta de cada personagem, há imensas novas armas e, isto sim muito interessante e capaz de mudar o estilo de jogo, um sistema de Pictos, que não são mais que um conjunto de buffs e debuffs passivos ou activos, que depois de assimilados, podem ser usados por qualquer elemento da party desde que este tenha pontos de Lumina suficientes para o escolher.

Ora, inicialmente não percebi bem qual o seu propósito, ou mesmo como funcionava este sistema, mas quando percebi o alcance e o potencial, fiquei com o pictos aos saltos! Foi com este sistema que mais mexi na minha party, mas a adaptei ao longo do jogo, mais diversifiquei os momentos de luta, embora seja forçado a admitir que não é um sistema muito equilibrado, e depois de encontrarmos a maneira que mais encaixa com as nossas ideias acabamos por mexer muito pouco, acabando num ponto médio entre nos aguentarmos o máximo tempo possível, deixando a parte do dano bruto quase como o almoço feito com os restos do jantar do dia anterior.

Há um overworld que inicialmente considerei desnecessário e com pouco propósito, mas serve como ligação entre níveis lineares e a liberdade de escolha, algo difícil de conciliar em mundos fechados.

Com isto começo-me a aproximar do fim do texto e da história. Expedition 33 não é um Death Stranding, mas perto do seu fim torna-se um carrossel de feira, daqueles para crianças, daqueles que as divertem sem deixar os pais com medo de serem projectadas a 8 metros de altura. A forma como tudo encaixa perfeitamente desarma-nos e fecha a linha. Acabou, não quero mais. Está bem assim, e mesmo desta forma é livre.

O que me empurrou definitivamente para Expedition 33 foi o post de uma pessoa que conheço a dizer que era um dos 5 melhores jogos de sempre, algo que, antes de jogar, pensava ser marcadamente exagerado, mas será mesmo? Se um grupo de pessoas se sentar à mesa a discutir esse tema, não terá meios para lutar pela sua posição no Olimpo dos videojogos? Acredito que seja cedo para o saber, muitas vezes os jogos envelhecem de forma imprevisível, e não excluo que veja a envelhecer mal.

O aparecimento deste jogo reacendeu a discussão do costume que o Game Pass desvaloriza os jogos, porém essa discussão aparenta resumir-se aos exclusivos da Sony e da Microsoft, e se falam desses 2 ou 3 jogos por ano, talvez concorde, já se quiserem falar de forma séria, é uma nova geração que joga nos seus telemóveis e não está habituada a pagar por jogos que vai desvalorizar estes jogos tradicionais. Mesmo se entrarmos no mundo das consolas e computadores, há jogos gratuitos para praticamente todos os gostos, e essa é a tradicional porta de entrada para quem vem de novo. Esses sim um real “problema”. Jogos como Expedition 33 mostram que o Game Pass pouco mexe na qualidade e criatividade de produção. O mercado independente será capaz de manter esses requisitos, mesmo num mundo em que os fundos estão cada vez mais difíceis de aparecer.

Já agora, quanto à nota 10. Sim, é a segunda.