Nos 1980, nas nossas viagens anuais até Vila Nova de Milfontes, houve sempre algo que me ficou impresso na memória: pessoas à beira da Estrada Nacional com um cartão na mão, com algo escrito que ainda não sabia ler o quê, com um polegar levantado. A minha família lá me foi dizendo que aquelas pessoas estavam a pedir “boleia” e explicaram-me o que isso era.

Não foram precisos os filmes e as séries dessa mesma época e posterior para a minha paranoia quase patológica achar que é um rotundo não, tanto a ideia de pedir boleia como de dar boleia a alguém. Por ironia apenas uma vez na minha vida estava tão desesperado (e estava acompanhado) que pedimos boleia, e correu tudo bem, mas isso é uma história para mais tarde.

HitchHiker – A Mystery Game é um jogo peculiar, onde as boleias são uma forma de encontrarmos a estrada para o passado do protagonista. Não de forma literal, não existe nada de especulativo neste jogo, nem uma das boleias que apanhamos é a Tardis. Mas ao longo de HitchHiker cada capítulo é uma boleia em si mesma, onde nos encontramos sentados no banco do pendura de um carro diferente, onde o condutor e proprietária da viatura vai interagindo connosco, e é nesses diálogos que vamos descobrindo quem somos.

Muitos apelidarão este jogo de walking simulator, e como sabem este é um termo que me irrita. Até porque não andamos, com os nossos próprios pés, mas andamos sim, sentados, à boleia. Se a piada seca é má, é apenas um reflexo ao nível da utilização da expressão walking simulator, que é igualmente má.

Como devem ter percebido, HitchHiker é um narrative game com um mínimo de componentes de interacção e exploração. Esta, aliás, está circunscrita aos objectos que encontramos no carro da nossa boleia, na maioria espalhados no tablier ou no porta-luvas.

Entre o quase interrogatório casual que as nossas boleias nos fazem – que eu sinto sempre que é um misto de curiosidade, conversa de circunstância e um aferir da nossa perigosidade – vamos conhecendo o nosso interlocutor, mas sobretudo a nós mesmos. 

Nestas viagens que fazemos pelo interior dos EUA, há um mundo que se desenrola no aparente quotidiano. A nossa primeira boleia é um agricultor e produtor de passas, e os diálogos entre as diferenças gastronómicas das uvas e das passas (que são, na prática, o mesmo alimento) são um grande ponto de partida para a introspecção do nosso protagonista.

Um jogo onde as interações e explorações são mínimas, onde não temos controlo sobre a nossa deslocação, e onde o nosso foco é assim dirigido para o diálogo e os enredos que se vão definindo a partir dessas conversa casual.

As nossas opções remetem-se a escolher as opções a partir de respostas possíveis às perguntas dos nossos interlocutores, onde o silêncio é uma resposta possível. 

O nosso protagonista, Copernicus, embarca nesta viagem com cinco estranhos para tentar resolver o puzzle da sua existência, interligado com o facto de não ter memória de quem é ou um destino estabelecido.

Numa experiência narrativa mais próxima de um filme interactivo na primeira pessoa, a qualidade da escrita é a prova dos nove da qualidade da obra. E nesse campo é inegável que a equipa responsável pela escrita dos diálogos e das situações que vamos vivendo fechados naqueles carros é de um talento tremendo. 

Com uma excelente direcção artística, tanto visual, com uma abordagem quase low poly em alguns elementos, e musical, com um ambiente sonoro minimalista que nos ajuda a enquadrar neste road movie tornado videojogo.

Felizmente que em termos de voice-acting existe uma grande qualidade de interpretação do excelente texto deste HitchHiker, que tornam o mundo ainda mais orgânico, tangível e real dentro das suas idiossincrasias.

Olhando para o catálogo da Versus Evil – recheado de bons jogos onde a acção fala mais alto, onde a narrativa vive quase sempre interligado com a aventura – é interessante ver a aposta numa obra exclusivamente narrativa. E no caso de HitchHiker, uma excelente viagem com um maravilhoso enredo, onde o final da estrada é na realidade descobrir qual foi o nosso ponto de partida.